quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O Índio e eu

O Índio e eu


Tempos depois...
Dia do ensaio do bloco de carnaval do Funchal. Funchal era um cara magro, alto, branco de cabelos escorridos até os ombros, ele era quase uma lenda, um personagem, uma figura.
A Historia dele que mais se comentava foi dele ter levado mais de 30 tiros e 10 facadas ao mesmo tempo e ter sobrevivido, o pessoal dizia em zoação que ele era um zumbi, que ele era eterno. Rsrsrs...
Para assistir aos ensaios do bloco, todo Bom Pastor se aglomerava no espaço em frente à quadra, se é que podemos chamar assim. Era uma casa com um terraço bem grande e um imenso quintal, mas era muito legal, afinal, ali o povo não tinha escola de samba, não tinha acesso a nenhum tipo de lazer, e esse espaço era algo muito importante para nós, ali surgiram passistas e percursionistas.
Nesse dia, a Nina como fazia sempre, foi pedir a minha mãe para eu ir com ela, estávamos conversando, eu, Nina, e Nadia, quando o Índio passou por nós, e pela primeira vez eu percebi que ele me olhou diferente, fiquei tão feliz que não me contive e disse as meninas:
- Vocês viram? Ele olhou pra mim! Finalmente ele me notou.
Elas começaram a rir, e a Nina disse:
- Como assim ele te notou? Ele já te notou há muito tempo, ele é amigo do teu irmão, e você não é invisível, é? Rsrsrs...
Eu respondi:
- Você entendeu... Ele parece estar diferente, algo nele está mudado.
De repente nosso clima de descontração é interrompido, quando olho para cima da quadra e vejo meu irmão cercado de caras mal encarados, vou a direção ao Ricardo e digo:
- Ricardo, Ricardo acho que meu irmão está com problemas, tem uns caras estranhos aqui na área cercando ele, acho que querem pegar ele.
Ricardo responde:
- Fica calma Sandrinha, ninguém vai pegar o Lima, vou lá pra ver o que está acontecendo.
Assim ele fez, reuniu os meninos de seu grupo e foi até onde meu irmão estava, eu como sempre abusada, fui atrás.
-Algum problema ai Lima?! - Exclamou interrogando o Ricardo.
Meu irmão, como sempre calmo, avesso a brigas e confusões respondeu:
- Nenhum problema não!
Falando isso ele estende a mão para o cara que o queria pegar, e o cara não aperta a sua mão e continua o encarando.
Ricardo então diz:
- Tu não vai apertar a mão do cara não? Qual é a tua? Ta querendo briga mesmo?
Vendo que meu irmão não estava mais só, e que a melhor atitude seria ele sair dali, o cara apertou a mão do meu irmão, virou as costas e seguiu seu rumo.
- Lima, você não é de confusão, não entendi essa parada, o que ta acontecendo? - Perguntou o Ricardo.
Meu irmão calmo como sempre respondeu:
- Cara, ele é de um grupo de break rival, e nós ganhamos dele no ultimo concurso.
Ricardo diz:
- Continue como você é! Não se meta em encrencas.
Tudo acalmou, e eu volto para perto das meninas... E mais uma vez o Índio passa me olhando, nesse intervalo, vejo uma linda mulata sambando, de short, top e sandálias douradas, ela era muito bonita, e sambava muito. Cara de pau como sou, não me contive, esperei a primeira oportunidade para falar com ela, assim que ela sentou para tomar um copo de água eu fui até ela e disse:
- Caraça! Você samba muito!
Ela, com cara de poucos amigos, e tipo pensando, “essa daí gosta de mulher”, me olhou com cara de desprezo e disse:
- Você acha?
Eu como sempre ingênua e espontânea digo:
- Nossa! Muito! E você também é muito bonita.
Naquele momento acho que ela percebeu que eu era apenas uma menina maluquinha que não segurava as emoções e a língua, e riu pra mim.
Então ela disse:
- Você não samba?
Eu respondi:
- Quem? Eu? Não! Porque?
Ela responde:
- Bem, é que estamos precisando de uma menina no bloco pra ser a princesa do bloco, e você poderia entrar nessa, o que acha?
Eu respondo:
- Eu? Não! Sou muito desajeitada, não sou bonita, não tenho como comprar a roupa, e não sei sambar.
Ela ri e fala:
-Vamos por partes, desajeitada agente dá jeito, bonita você é, roupa agente arruma, e sambar eu te ensino, o que mais?
Eu:
- Mais nada... Mas não sei se vai dar certo!
Ela:
-Confie em mim, deixa o resto comigo! Você será a nossa passista, a nossa princesa, além do mais é um bloco, não é uma escola de samba.
Eu disse:
- Ta legal, vou tentar.
Ela:
-Amanhã te vejo na minha casa, passa lá depois do almoço.
Deu-me o endereço, e voltou pro ensaio.
No Dia seguinte...
Fui à casa da Merilin, como havíamos combinado, e tive uma imensa surpresa: aquela menina descolada que usava roupas sensuais era uma excelente filha, e dona de casa, tomava conta da irmã ma nova, que aliás, era loira de olhos azuis, o que causava comentários entre os vizinhos, afinal a Merilin era bem negra, mas as duas eram filhas de pais diferentes.
Ela então pegou um vestido velho tipo vestido de 15 anos, com filó e tal, e disse:
- Essa vai ser sua roupa!
Eu respondi interrogando:
-Mas eu não vou colocar o corpo todo de fora não, né? Alem de ter vergonha, sou muito feia de corpo, tenho estômago alto, peitão e pernas finas, ficaria ridículo.
Ela diz:
- Fica tranqüila. Você não precisa mostrar o corpo assim... Você não vai ser rainha de bateria, esse é o meu lugar, você vai ser apenas a representante do bairro, a princesa do bloco.
A Merilin se tornou uma grande amiga. Ensaiávamos todos os dias, ela era uma garota bem diferente quando estava no bloco, de que quando estava em casa, as pessoas diziam que ela era piranha, mas eu sabia que ela era virgem, que era boa filha, e que tinha um namorado só. As pessoas a julgavam pelo personagem que ela usava no bloco, por ela ter um corpo invejável e usar shorts e tops (ela podia).
Com tudo isso, eu adquiri um aprendizado por toda minha vida, que carrego comigo até hoje, de que não devemos julgar ninguém pelas aparências, e que muitas pessoas denigrem a imagem de outras por pura inveja, como as mulheres recalcadas que não tinham um corpo daquele e faziam questão de falar mal da Merilin pra humilhar e denegrir, apenas pra dizer que eram melhores que ela de alguma maneira, já que fisicamente seria difícil.
A história da Merilin foi muito triste... Tempos depois foi estuprada covardemente, e ao invés de ser apoiada, o povo ainda dizia que ela havia merecido, pois era o que tava querendo com as roupas que usava.
Minha estréia no bloco...
Saímos da rua Marcovald, e seguimos pela estrada de Belford Roxo, passando por todo Bom Pastor. Eu estava desesperada, não tinha aprendido a sambar tão bem como a Meilin, ficava apenas andando de um lado para o outro no meio do bloco. Foi quando vi que o Índio me olhava, e acompanhava o bloco com cara de riso, mas com um olhar bem diferente do de costume. E eu ali, pagando um “Gorila”.
Final do desfile... Vou até uma barraca de cachorro quente, quando vejo o Índio se aproximar dizendo:
- Legal você no Bloco!
Eu muito nervosa respondo:
- Você ta debochando, né?!
Ele ri, e eu digo:
- Quer saber, se tiver isso é um problema seu, não to nem ai pra sua opinião!
Ele diz:
-Calma, não estou debochando não! Mas que você não sabe sambar, isso é fato.
Então quem ri sou eu:
-É verdade! Não levo jeito mesmo pra coisa. Rsrsrs...
Ele diz:
- Deixa eu te pagar um cachorro quente?!
Eu digo:
- Não precisa. Eu paguei o mico, agora pago o cachorro também! Rsrs
Ele ri e responde:
-Mas eu quero pagar um cachorro quente pra você, pode ser?
Eu digo:
- Ta legal, já que você insiste.
Pegamos nossos cachorros quentes e sentamos na esquina da casa de material de construção do João, e fomos comer.
- Que perfume é esse que você usa? Eu nunca conheci ninguém que tivesse esse cheiro? - Ele perguntou.
-Jasmim... - Eu respondi.
Ele diz:
- Muito bom, parece incenso, diferente... Você é uma garota bem diferente.
Eu levanto e digo:
- Legal, mas agora tenho que ir embora!
-Gostaria de ver você outras vezes, pode ser? - Diz ele.
-Pode ser sim! Eu respondo.
-Vou te levar em casa! - Ele disse.
- Não precisa, ta cedo! – Respondo.
- Mas eu quero!
- Tudo bem, ta legal.
Então seguimos para a rua ponta negra...
Quando cheguei bem enfrente ao portão, ele veio como se fosse me dar um beijo no rosto, e me surpreendeu com um beijo nos lábios e disse:
- Terminei meu namoro, você quer se encontrar comigo no sábado? No Inferninho?
Inferninho era o nome de um baile, que de tão ruim, e mal freqüentado levava esse nome.
Respondi:
-Quero sim!
Ele diz:
- Então combinado.
Nos despedimos segurando as mãos soltando bem devagar.
Naquele dia, eu parecia estar no paraíso, me sentia com os pés foras do chão... O menino dos meus sonhos segurou minha mão, pagou um lanche pra mim, me deu um beijo nos lábios, e ainda marcou um encontro comigo...
Dia do baile... A Merilin se prontificou a me levar, meu coração não cabia dentro do peito, mas ao chegar ao clube, vi meu mundo desmoronar, desabar sobre minha cabeça, a primeira coisa que vi foi ele na porta segurando a mão da Cristina, sua ex-namorada, ela era linda, tinha olhos verdes, se vestia bem, parecia a madona, era filha de portugueses também, e não parava muito por ali pelo Bom Pastor.
Ele me olhou, e nos seus olhos eu pude ver que ele não era um canalha, ele não queria fazer ninguém sofrer, ele também estava perdido, ele lamentava aquela situação tanto quanto eu. Não tomei nenhuma atitude, fiquei ali quieta, entrei no clube, me encostei num canto e fiquei ali, fazendo o que eu mas sabia fazer, segurando vela da Merilin e do Marcos.
O Índio amava a Cristina, ele tinha tentado esquecê-la, gostar de outras meninas, mas ela era o grande e único amor de sua vida, amor tão grande que o levou a morte anos depois...
Quando a Cristina o deixou para ir pra Portugal, ele caiu no alcoolismo, virou um bêbado, andava maltrapilho pela rua, anos depois ela retorna ao Brasil, e pede a ele para parar de beber, e fazer uma faculdade, e diz que vai se casar com ele, o amor dele era tão grande que assim ele fez, fez mil planos, parou de beber, e mais uma vez ela o deixou... Mas dessa vez ele caiu em desgraça total, e voltou a beber em dobro, e morreu de cirrose.
Voltando a nossa história...
Ele apareceu bem em minha frente, e disse:
- Você está magoada comigo?
Eu respondi:
- Não! Ta tudo bem.
-Vamos dançar uma musica? Talvez a primeira e ultima dança?
Eu respondi:
-Vamos sim!
Saímos para o meio do salão para dançar uma música do George Michael, que na época era o maior sucesso.
Nós dois ali, de corpos bem próximos, eu podia sentir seu calor, seu cheiro, e ele disse:
- Sandrinha, você é uma menina super legal, eu queria muito gostar de você, mas agente não escolhe de quem gosta, voltei pra minha namorada, me desculpe, não fiz por mal.
Eu respondi:
- Sei que você não fez por mal. Tudo bem! Continuo achando você um cara legal.
E assim nos despedimos, com uma dança e um beijo no rosto.
Voltei para onde eu estava, e de longe ficava assistindo ele e a Cristina se beijando, assim como a Merilin e o Marcos, e ficava pensando que havia algo errado comigo, eu era legal, mas não era amada.
De repente minha tristeza é quebrada por um estranho pré-sentimento, um homem passa por mim e meu corpo todo se arrepia, sinto uma energia pesada, era como se eu pudesse sentir a presença do mal, uma sensação assustadora, eu senti que algo ruim aconteceria.
Final do baile, Merilin e Marcos vão namorar na calçada do supermercado Torrebela e eu fiquei sentada na marquise, mas de repente fui invadida por um pânico repentino, uma sensação horrível... E eu disse:
- Merilin, precisamos ir embora!
- Qual é Sandrinha, só porque o Índio não ficou contigo, eu não posso ficar com meu namorado? Ela respondeu.
- Merilin, não é isso não, você sabe que eu não me importo de segurar vela, é que to com aquele pré-sentimento que tenho quando algo de ruim vai acontecer.
Ela irônica respondeu:
- E aconteceu né? Você levou o fora do cara que você gosta! Espera só um pouco, pô!
Logo em seguida que ela fala isso, vejo um grupo de pessoas seguindo para a direção que devíamos seguir para casa, desesperada ao ver as pessoas indo embora, levantei e disse:
- Tudo bem, você fica, eu vou com aquele grupo, o Marco te leva em casa.
Nesse instante ela toma a decisão de ir comigo, quando já estávamos misturadas com o grupo de pessoas, ouvimos cinco tiros, vindo bem de perto, e um cara alto de uns 1,90 de altura, magro, moreno, passa por nós, com um chapéu tampando seu rosto, usava uma arma grande que eu não sei qual é, passou exclamando:
-Mais um! Mais um!
E seguiu correndo, passando no meio de nós, porém, felizmente, ele não tinha a intenção de matar ninguém daquele grupo.
Como é de costume, todo mundo vai ver quem era o morto, para minha surpresa, o morto era o bêbado que havia passado por mim no baile, só então fui entender o porque daquele estranho pré sentimento.

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