quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O Índio e eu

O Índio e eu


Tempos depois...
Dia do ensaio do bloco de carnaval do Funchal. Funchal era um cara magro, alto, branco de cabelos escorridos até os ombros, ele era quase uma lenda, um personagem, uma figura.
A Historia dele que mais se comentava foi dele ter levado mais de 30 tiros e 10 facadas ao mesmo tempo e ter sobrevivido, o pessoal dizia em zoação que ele era um zumbi, que ele era eterno. Rsrsrs...
Para assistir aos ensaios do bloco, todo Bom Pastor se aglomerava no espaço em frente à quadra, se é que podemos chamar assim. Era uma casa com um terraço bem grande e um imenso quintal, mas era muito legal, afinal, ali o povo não tinha escola de samba, não tinha acesso a nenhum tipo de lazer, e esse espaço era algo muito importante para nós, ali surgiram passistas e percursionistas.
Nesse dia, a Nina como fazia sempre, foi pedir a minha mãe para eu ir com ela, estávamos conversando, eu, Nina, e Nadia, quando o Índio passou por nós, e pela primeira vez eu percebi que ele me olhou diferente, fiquei tão feliz que não me contive e disse as meninas:
- Vocês viram? Ele olhou pra mim! Finalmente ele me notou.
Elas começaram a rir, e a Nina disse:
- Como assim ele te notou? Ele já te notou há muito tempo, ele é amigo do teu irmão, e você não é invisível, é? Rsrsrs...
Eu respondi:
- Você entendeu... Ele parece estar diferente, algo nele está mudado.
De repente nosso clima de descontração é interrompido, quando olho para cima da quadra e vejo meu irmão cercado de caras mal encarados, vou a direção ao Ricardo e digo:
- Ricardo, Ricardo acho que meu irmão está com problemas, tem uns caras estranhos aqui na área cercando ele, acho que querem pegar ele.
Ricardo responde:
- Fica calma Sandrinha, ninguém vai pegar o Lima, vou lá pra ver o que está acontecendo.
Assim ele fez, reuniu os meninos de seu grupo e foi até onde meu irmão estava, eu como sempre abusada, fui atrás.
-Algum problema ai Lima?! - Exclamou interrogando o Ricardo.
Meu irmão, como sempre calmo, avesso a brigas e confusões respondeu:
- Nenhum problema não!
Falando isso ele estende a mão para o cara que o queria pegar, e o cara não aperta a sua mão e continua o encarando.
Ricardo então diz:
- Tu não vai apertar a mão do cara não? Qual é a tua? Ta querendo briga mesmo?
Vendo que meu irmão não estava mais só, e que a melhor atitude seria ele sair dali, o cara apertou a mão do meu irmão, virou as costas e seguiu seu rumo.
- Lima, você não é de confusão, não entendi essa parada, o que ta acontecendo? - Perguntou o Ricardo.
Meu irmão calmo como sempre respondeu:
- Cara, ele é de um grupo de break rival, e nós ganhamos dele no ultimo concurso.
Ricardo diz:
- Continue como você é! Não se meta em encrencas.
Tudo acalmou, e eu volto para perto das meninas... E mais uma vez o Índio passa me olhando, nesse intervalo, vejo uma linda mulata sambando, de short, top e sandálias douradas, ela era muito bonita, e sambava muito. Cara de pau como sou, não me contive, esperei a primeira oportunidade para falar com ela, assim que ela sentou para tomar um copo de água eu fui até ela e disse:
- Caraça! Você samba muito!
Ela, com cara de poucos amigos, e tipo pensando, “essa daí gosta de mulher”, me olhou com cara de desprezo e disse:
- Você acha?
Eu como sempre ingênua e espontânea digo:
- Nossa! Muito! E você também é muito bonita.
Naquele momento acho que ela percebeu que eu era apenas uma menina maluquinha que não segurava as emoções e a língua, e riu pra mim.
Então ela disse:
- Você não samba?
Eu respondi:
- Quem? Eu? Não! Porque?
Ela responde:
- Bem, é que estamos precisando de uma menina no bloco pra ser a princesa do bloco, e você poderia entrar nessa, o que acha?
Eu respondo:
- Eu? Não! Sou muito desajeitada, não sou bonita, não tenho como comprar a roupa, e não sei sambar.
Ela ri e fala:
-Vamos por partes, desajeitada agente dá jeito, bonita você é, roupa agente arruma, e sambar eu te ensino, o que mais?
Eu:
- Mais nada... Mas não sei se vai dar certo!
Ela:
-Confie em mim, deixa o resto comigo! Você será a nossa passista, a nossa princesa, além do mais é um bloco, não é uma escola de samba.
Eu disse:
- Ta legal, vou tentar.
Ela:
-Amanhã te vejo na minha casa, passa lá depois do almoço.
Deu-me o endereço, e voltou pro ensaio.
No Dia seguinte...
Fui à casa da Merilin, como havíamos combinado, e tive uma imensa surpresa: aquela menina descolada que usava roupas sensuais era uma excelente filha, e dona de casa, tomava conta da irmã ma nova, que aliás, era loira de olhos azuis, o que causava comentários entre os vizinhos, afinal a Merilin era bem negra, mas as duas eram filhas de pais diferentes.
Ela então pegou um vestido velho tipo vestido de 15 anos, com filó e tal, e disse:
- Essa vai ser sua roupa!
Eu respondi interrogando:
-Mas eu não vou colocar o corpo todo de fora não, né? Alem de ter vergonha, sou muito feia de corpo, tenho estômago alto, peitão e pernas finas, ficaria ridículo.
Ela diz:
- Fica tranqüila. Você não precisa mostrar o corpo assim... Você não vai ser rainha de bateria, esse é o meu lugar, você vai ser apenas a representante do bairro, a princesa do bloco.
A Merilin se tornou uma grande amiga. Ensaiávamos todos os dias, ela era uma garota bem diferente quando estava no bloco, de que quando estava em casa, as pessoas diziam que ela era piranha, mas eu sabia que ela era virgem, que era boa filha, e que tinha um namorado só. As pessoas a julgavam pelo personagem que ela usava no bloco, por ela ter um corpo invejável e usar shorts e tops (ela podia).
Com tudo isso, eu adquiri um aprendizado por toda minha vida, que carrego comigo até hoje, de que não devemos julgar ninguém pelas aparências, e que muitas pessoas denigrem a imagem de outras por pura inveja, como as mulheres recalcadas que não tinham um corpo daquele e faziam questão de falar mal da Merilin pra humilhar e denegrir, apenas pra dizer que eram melhores que ela de alguma maneira, já que fisicamente seria difícil.
A história da Merilin foi muito triste... Tempos depois foi estuprada covardemente, e ao invés de ser apoiada, o povo ainda dizia que ela havia merecido, pois era o que tava querendo com as roupas que usava.
Minha estréia no bloco...
Saímos da rua Marcovald, e seguimos pela estrada de Belford Roxo, passando por todo Bom Pastor. Eu estava desesperada, não tinha aprendido a sambar tão bem como a Meilin, ficava apenas andando de um lado para o outro no meio do bloco. Foi quando vi que o Índio me olhava, e acompanhava o bloco com cara de riso, mas com um olhar bem diferente do de costume. E eu ali, pagando um “Gorila”.
Final do desfile... Vou até uma barraca de cachorro quente, quando vejo o Índio se aproximar dizendo:
- Legal você no Bloco!
Eu muito nervosa respondo:
- Você ta debochando, né?!
Ele ri, e eu digo:
- Quer saber, se tiver isso é um problema seu, não to nem ai pra sua opinião!
Ele diz:
-Calma, não estou debochando não! Mas que você não sabe sambar, isso é fato.
Então quem ri sou eu:
-É verdade! Não levo jeito mesmo pra coisa. Rsrsrs...
Ele diz:
- Deixa eu te pagar um cachorro quente?!
Eu digo:
- Não precisa. Eu paguei o mico, agora pago o cachorro também! Rsrs
Ele ri e responde:
-Mas eu quero pagar um cachorro quente pra você, pode ser?
Eu digo:
- Ta legal, já que você insiste.
Pegamos nossos cachorros quentes e sentamos na esquina da casa de material de construção do João, e fomos comer.
- Que perfume é esse que você usa? Eu nunca conheci ninguém que tivesse esse cheiro? - Ele perguntou.
-Jasmim... - Eu respondi.
Ele diz:
- Muito bom, parece incenso, diferente... Você é uma garota bem diferente.
Eu levanto e digo:
- Legal, mas agora tenho que ir embora!
-Gostaria de ver você outras vezes, pode ser? - Diz ele.
-Pode ser sim! Eu respondo.
-Vou te levar em casa! - Ele disse.
- Não precisa, ta cedo! – Respondo.
- Mas eu quero!
- Tudo bem, ta legal.
Então seguimos para a rua ponta negra...
Quando cheguei bem enfrente ao portão, ele veio como se fosse me dar um beijo no rosto, e me surpreendeu com um beijo nos lábios e disse:
- Terminei meu namoro, você quer se encontrar comigo no sábado? No Inferninho?
Inferninho era o nome de um baile, que de tão ruim, e mal freqüentado levava esse nome.
Respondi:
-Quero sim!
Ele diz:
- Então combinado.
Nos despedimos segurando as mãos soltando bem devagar.
Naquele dia, eu parecia estar no paraíso, me sentia com os pés foras do chão... O menino dos meus sonhos segurou minha mão, pagou um lanche pra mim, me deu um beijo nos lábios, e ainda marcou um encontro comigo...
Dia do baile... A Merilin se prontificou a me levar, meu coração não cabia dentro do peito, mas ao chegar ao clube, vi meu mundo desmoronar, desabar sobre minha cabeça, a primeira coisa que vi foi ele na porta segurando a mão da Cristina, sua ex-namorada, ela era linda, tinha olhos verdes, se vestia bem, parecia a madona, era filha de portugueses também, e não parava muito por ali pelo Bom Pastor.
Ele me olhou, e nos seus olhos eu pude ver que ele não era um canalha, ele não queria fazer ninguém sofrer, ele também estava perdido, ele lamentava aquela situação tanto quanto eu. Não tomei nenhuma atitude, fiquei ali quieta, entrei no clube, me encostei num canto e fiquei ali, fazendo o que eu mas sabia fazer, segurando vela da Merilin e do Marcos.
O Índio amava a Cristina, ele tinha tentado esquecê-la, gostar de outras meninas, mas ela era o grande e único amor de sua vida, amor tão grande que o levou a morte anos depois...
Quando a Cristina o deixou para ir pra Portugal, ele caiu no alcoolismo, virou um bêbado, andava maltrapilho pela rua, anos depois ela retorna ao Brasil, e pede a ele para parar de beber, e fazer uma faculdade, e diz que vai se casar com ele, o amor dele era tão grande que assim ele fez, fez mil planos, parou de beber, e mais uma vez ela o deixou... Mas dessa vez ele caiu em desgraça total, e voltou a beber em dobro, e morreu de cirrose.
Voltando a nossa história...
Ele apareceu bem em minha frente, e disse:
- Você está magoada comigo?
Eu respondi:
- Não! Ta tudo bem.
-Vamos dançar uma musica? Talvez a primeira e ultima dança?
Eu respondi:
-Vamos sim!
Saímos para o meio do salão para dançar uma música do George Michael, que na época era o maior sucesso.
Nós dois ali, de corpos bem próximos, eu podia sentir seu calor, seu cheiro, e ele disse:
- Sandrinha, você é uma menina super legal, eu queria muito gostar de você, mas agente não escolhe de quem gosta, voltei pra minha namorada, me desculpe, não fiz por mal.
Eu respondi:
- Sei que você não fez por mal. Tudo bem! Continuo achando você um cara legal.
E assim nos despedimos, com uma dança e um beijo no rosto.
Voltei para onde eu estava, e de longe ficava assistindo ele e a Cristina se beijando, assim como a Merilin e o Marcos, e ficava pensando que havia algo errado comigo, eu era legal, mas não era amada.
De repente minha tristeza é quebrada por um estranho pré-sentimento, um homem passa por mim e meu corpo todo se arrepia, sinto uma energia pesada, era como se eu pudesse sentir a presença do mal, uma sensação assustadora, eu senti que algo ruim aconteceria.
Final do baile, Merilin e Marcos vão namorar na calçada do supermercado Torrebela e eu fiquei sentada na marquise, mas de repente fui invadida por um pânico repentino, uma sensação horrível... E eu disse:
- Merilin, precisamos ir embora!
- Qual é Sandrinha, só porque o Índio não ficou contigo, eu não posso ficar com meu namorado? Ela respondeu.
- Merilin, não é isso não, você sabe que eu não me importo de segurar vela, é que to com aquele pré-sentimento que tenho quando algo de ruim vai acontecer.
Ela irônica respondeu:
- E aconteceu né? Você levou o fora do cara que você gosta! Espera só um pouco, pô!
Logo em seguida que ela fala isso, vejo um grupo de pessoas seguindo para a direção que devíamos seguir para casa, desesperada ao ver as pessoas indo embora, levantei e disse:
- Tudo bem, você fica, eu vou com aquele grupo, o Marco te leva em casa.
Nesse instante ela toma a decisão de ir comigo, quando já estávamos misturadas com o grupo de pessoas, ouvimos cinco tiros, vindo bem de perto, e um cara alto de uns 1,90 de altura, magro, moreno, passa por nós, com um chapéu tampando seu rosto, usava uma arma grande que eu não sei qual é, passou exclamando:
-Mais um! Mais um!
E seguiu correndo, passando no meio de nós, porém, felizmente, ele não tinha a intenção de matar ninguém daquele grupo.
Como é de costume, todo mundo vai ver quem era o morto, para minha surpresa, o morto era o bêbado que havia passado por mim no baile, só então fui entender o porque daquele estranho pré sentimento.

domingo, 23 de agosto de 2009

A Fuga

A Fuga

A Dona Eurides, mãe da Verinha, temerosa pela onda de violência, e também de estupros que estava tomando o Bom Pastor, resolveu tomar a iniciativa de organizar festas americanas para os jovens do morro. As meninas levavam um prato e os meninos os refrigerantes, e o imenso quintal cimentado da dona Eurides, virava um baile maravilhoso, dividido em menudetes e a galera do Break.
As festas aconteciam de 15 em 15 dias, mas na semana que não tinha festa, os jovens se reuniam lá também, só pra colocar o papo em dia.
Num desses dias de festa, eu estava sentada no portão, sozinha, meio deprê, quando alguém se aproxima e diz:
- Oi, parece que eu não sou o único que não está a fim de se divertir hoje!
Eu irônica respondi:
-É... Parece que não.
- Meu nome é Jair e o seu?
- Sandra, mas conhecida como Sandrinha.
Ele diz:
-Posso saber o porque de tanta tristeza?
Eu respondo:
-Humm.. Só se você me contar o motivo da sua, primeiro!
Ele diz:
-Bem, é uma história longa e complicada, eu tenho uma namorada chamada Marta, ela é a mulher da minha vida, eu a amo muito.
Eu:
-Sei...
Ele:
-O problema é que a família dela quer nos separar, eles acham que o namoro está serio demais, e que está atrapalhando ela nos estudos, e também acham que somos muito jovens e que eu posso me aproveitar dela... Essas coisas. Entende?
Eu:
- Entendo... Mas pelo menos ela te ama, eu gosto de alguém que nem me nota, que nunca vai ser meu... E eu o amo demais.
Ele:
- Infelizmente essas coisas fazem parte da vida, mas tudo passa, somos jovens, você é uma garota super simpática, legal, na hora certa vai encontrar um cara que vai te dar valor e te fazer feliz, como você merece.
Eu:
-Obrigada, tomara que sim.
Naquele momento, percebi que uma grande amizade acabava de nascer, e foi exatamente isso o que aconteceu. O Jair era novo no morro e eu não tinha tido a oportunidade de conhecê-lo. Daquele dia em diante, eu teria um ombro amigo todas as vezes que estivesse triste, e ele idem. Nos tornamos unha e carne, como irmãos, nossos sentimentos eram puros e sinceros. Nunca vi o Jair como um menino, mas como um irmão, ele me chamava de maninha, e eu o chamava de maninho. Mas como a maldade é uma das piores virtudes da humanidade, começaram a espalhar boatos de que estávamos ficando, porém eram mentiras infundadas, ele não gostava de meninas brancas, e amava sua namorada, eu só pensava e amava o Carlinhos, mas conhecido como Índio. Ele era lindo, tinha a pele bem morena e os cabelos muito lisos e negros, tipo um índio mesmo.
Eu andava meio triste, pois só via ele quando íamos aos bailes, porem com a onda de violência, as meninas nem podiam sair de casa, como se isso não bastasse, os bandidos invadiam as casas e estupravam as meninas na frente de irmãos pais. Como aconteceu com duas amigas minhas da minha sala.
Estávamos todos em sala quando nosso professor Sanjo narrou o fato, dizendo que as duas gêmeas não estavam freqüentado as aulas por esse motivo, que elas estavam muito abaladas e que naquele dia, finalmente, elas estariam retornando, e por isso ele gostaria de pedir que ninguém fizesse nenhuma pergunta às meninas, nem sobre o fato delas perderem tantas aulas.
Uma semana depois...
-Sandrinha, Sandrinha, você precisa me ajudar. -Diz o Jairzinho gritando na minha rua, enfrente a minha porta.
-O que houve?! - Respondi.
Ele:
- Você precisa me ajudar a ver a Martinha, vai na casa dela e pede a mãe dela pra deixar ela ir ao Nojentus com você!
-Eu?? Pra que? Como assim? - Interroguei.
-É que eu não posso ir até lá, e como eles gostam muito de você, eu tenho certeza que vão liberar ela, ai eu vou até lá pra vê-la. - Ele disse.
Mas eu estava com um pressentimento muito ruim, e desde criança sempre tive premonição e intuição. Nesse dia eu estava muito mal, algo não ia bem, eu sabia que não deveria ir a lugar nenhum, eu disse:
- Maninho, sinto muito, mas não vai dar não! Estou com aquele sentimento ruim que tenho toda vez que vai acontecer algo ruim!
Ele Diz:
- Sandrinha, por favor! Não faz isso comigo não, eu só posso contar com você, você é a única pessoa que eu tenho pra me ajudar, esse pressentimento deve ser por causa das coisas que vem acontecendo, você deve ta impressionada.
Depois de muito relutar, eu decidi ajudar meu amigo, fui até a casa da Martinha pedir a mãe dela pra ela ir ao clube comigo, e disse que voltaríamos cedo.
Hora do baile... Mais uma vez, lá estava eu segurando vela, acho que passei metade da minha adolescência fazendo isso... Rsrsrs.
Sentei num muro que separava o bar do salão, e fiquei ali, só curtindo minha dor de cotovelo e minha solidão, mas não conseguia ficar bem, meu pressentimento cada vez aumentava e aquilo era desesperador... Me torturava a cada minuto.
O Baile acaba, e como sempre, formam-se os grupos que seguiam seus rumos juntos. Esses grupos iam se separando aos poucos, foi assim que de repente só eu e Jair estávamos na velha estrada de Belford Roxo... Parecia tudo normal, mas eu sabia que aquele não era um dia como outro qualquer. Os carros passavam por nós, até que olhei para trás, e vi dois faróis de carro ao longe... Naquele instante eu percebi que o que eu temia, ia se tornar fato.
Comecei a sentir uma energia muito negativa, meu corpo arrepiou, meu coração disparou, então disse ao Jair:
- Vamos correr! Temos que correr!
Ele disse:
-Ta maluca? Pra que?
Eu Disse:
-Aquele carro que vem devagar lá trás, é aquele carro... Algo vai acontecer.
Ele disse:
-Vamos fazer o seguinte, vamos andar calmamente, como se nada estivesse acontecendo, quando chegar na próxima ruazinha a esquerda agente dobra, corre e se esconde no primeiro lugar que der, ok?!
Eu Disse:
-Ok!
E assim fizemos... Entramos na pequena rua pulamos o muro de uma casa, e nos escondemos atrás desse muro, e por um buraco desse muro, vimos quando o carro parou no meio da estrada, e três homens começaram a olhar como se estivessem procurando por algo. Vendo aquela cena, o medo e o desespero dominaram meu ser por completo. O carro seguiu lentamente ainda como se estivesse procurando por algo, e nós percorremos varias ruas, nos escondendo entre matos e muros, até chegar na rua pinheiro machado (mais conhecida como Morrão). Naquela época, não dava pra um carro subir, pois a rua era esburacada com imensas crateras. Foi quando ao chegar no pé do morro, perto da casa do Jair, vimos os caras correndo atrás de nós.
O Jair disse:
-Vamos entrar na minha casa!
Eu disse:
- Não!! Se agente entrar na tua casa eles vão ver onde é, entram e fazem o que tem pra fazer. Vamos continuar cortando caminho, que a partir daqui eles não vão conseguir ver onde entramos.
E assim fizemos, até chegar na minha casa, e ao contarmos pro meu pai o ocorrido, ele pegou uma barra de ferro e foi pra ver se a rua tava tranqüila.
Graças a Deus tudo voltou ao normal.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Cena Macabra

Cena Macabra

Tempos depois...
Fim de semana seguinte lá vou eu para a casa da Verinha, para sair com ela e as panteras negras, era a noite da caravana do amor. Eu estava mais eufórica do que nunca, afinal, era a noite em que eu veria de perto o Alberto Brizola e ainda participaria do concurso de cover dos Menudos e meu irmão participaria do concurso de break. A Nina, como sempre, me enfeitou toda. Ela era como uma irmã mais velha, sempre cuidando de mim, querendo me ver bonita e feliz. Lá fomos para o clube Las Vegas, que ficava no centro de Belford Roxo. O clima era contagiante, rodas de break em toda parte, cada grupo mais estiloso que o outro, cada um mandando mais que o outro, mas tudo num clima de amizade e paz. Lembro-me daquela noite com uma imensa nostalgia. Posso sentir a emoção que me causou só de lembrar, e me transporto a tal ponto do meu coração disparar de saudades... Aquela musica, aquelas luzes, meus amigos... Eu estava hipnotizada olhando a roda de break, quando o clima é quebrado pelo apresentador do evento anunciando o Alberto Brizola. Um fato marcante aconteceria comigo. Aquela seria a noite em que eu ganharia minha primeira rosa, que é minha flor preferida. Alberto Brizola começa a cantar a musica “Menina”, e eu boquiaberta, colada no palco, quase que babando, enfeitiçada, pois ele parecia cantar pra mim. Foi quando, de repente, ele me estendeu a mão e me deu uma linda rosa vermelha e um beijo na mão, olhando bem dentro dos meus olhos. A emoção era tanta que eu nem cabia dentro de mim, não me contive e chorei. Na época eu pensava que era por causa do Alberto, mas hoje tenho duvidas, se foi por ele ou pela rosa, pois sou fanática por rosas vermelhas. A minha viagem foi interrompida, por gritos e zoação do pessoal do The Break City e pelas meninas das panteras Negras, dizendo:
- Aeee, alguém nem vai dormir hoje!!
E foi realmente o que aconteceu, não só comigo, mas com o pessoal do The Break City que ganharam o primeiro lugar na mesma noite, e ganharam o prêmio em dinheiro. Esse dia foi muito especial para todos nós. O meu irmão e o grupo pararam numa barraca de cachorro quente e pagaram lanches pra todos para comemorar a vitória. Naquela época, nenhum de nós bebíamos bebidas alcoólicas, nos só queríamos dançar e paquerar.
Semana seguinte... Sexta feira... Vou para casa da minha tia Irani, em São Vicente, lugar
Que ela mora até hoje. Minha querida tia Irani, era muito mais que uma tia, era uma grande amiga, me dava conselhos, gostava de ouvir minhas historias, ler minhas poesias, incentivava meus dons para pintura e desenho, aliás, até hoje tem um quadro pintado por mim aos 12 anos, e um velho caderno de poemas da mesma época.
Nessa sexta, eu fui para dormir lá, para ir a uma festa com a Mônica e a Rosana, filhas de uma vizinha de minha tia, mas no dia seguinte fui bem cedo pra casa, pois estava preocupada com o Felipe, meu gatinho amarelo, eu era completamente apaixonada por ele.
Levantei cedo, fui na padaria, fervi leite, coloquei a mesa e chamei meus tios pro café como sempre eu fazia quando estava lá. Tomei meu café e segui a pé, uns 5 quilômetros, até o Bom Pastor. Ao chegar no inicio da rua ponta negra, no pé do morro, vejo o Zé Carlos, filho da Dona Marilsa, com metade do corpo pra fora da janela gritando muito desesperado, em minha direção:
-Sandrinha, Sandrinha! Mataram meu irmão, mataram meu irmão Beto, Sandrinha.
Eu não tive nem o que dizer, não sabia como, e nem podia ajudar, apenas interroguei:
-Onde? Quando?
Chorando muito, ele me respondeu:
-Ontem à noite, o corpo está lá na ponta do morro, acabaram com ele!
Eu saí desnorteada, mil pensamentos e lembranças me vinham à cabeça. Beto, assim que chegamos no Bom Pastor, ainda bem garotinho, ajudava minha mãe com as bolsas de mercado, carregava água para minha mãe, era quase que um irmão pra gente, senti muita dor em meu peito, pois a nossa vida já era tão dura, fome, dificuldades, e ele morre assim, sem ter tempo de conhecer outra vida, ter outras oportunidades, ele não teve escolha.
Cheguei em casa e perguntei a minha mãe:
- Mãe, você sabe porque isso aconteceu, você ouviu alguma coisa a respeito?
Minha mãe responde:
- Não se sabe de nada, a única coisa que se sabe é que ele está morto, nada mais.
Eu disse:
- Vou lar ver o corpo
Minha mãe disse me recomendando:
- Acho melhor você não ir, você pode ficar chocada.
Eu, não escutei, e segui até o pé do morro, e ao chegar ao local me deparei com uma das cenas mais macabras que já vi na minha vida, não havia partes inteiras do rosto dele, só pedaços por todas as partes, e cães brigando pelos pedaços dele.
Dona Marilza demonstrava sua dor, sem derramar uma lagrima, mas podíamos ver o quanto ela sofria, aquela mulher tão guerreira, honesta, e boa, não merecia presenciar aquela cena, mãe de 8 filhos, Beto era mais velho, e a ajudava com as despesas da casa, e pelo que sabemos, era bom filho e bom pros seus irmãos pequenos.
Esse ocorrido foi um mistério na época, e assim continuou, e continua até hoje, foram contadas varias versões, tipo, que ele se envolveu com uma mulher casada, e que foi um crime passional, outra versão foi de que ele era viciado em drogas, e foi um acerto de contas de uma divida com a boca. Porem até hoje permanece o mistério, e a única coisa que se sabe, foi que ele implorou muito pra não morrer, pois o pessoal da rua ouviu seus gritos de horror.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A Chacina que abalou a Baixada Fluminense

Com o passar dos anos, muitas coisas mudaram no bairro. Aquele lugarzinho tranqüilo, aos poucos entrava nas manchetes sangrentas dos jornais e noticiários da época.
Em dias de baile, eu ia com as meninas arrasar e dançar (eu achava), mas quem arrasava mesmo era o The Break City. Lembro-me como se fosse hoje o dia em que eles ganharam o primeiro concurso. Foi na Igreja Católica do Jardim Bom Pastor. No bairro não tinha cinema, shoppings ou teatros... Absolutamente nada para se fazer. Ficávamos aguardando os dias de festas, como carnaval e festas juninas.
A festa da Igreja era muito divertida, tinha muita comida típica, karaokê, concurso de dança. Foi assim que o grupo teve sua primeira aparição em público, e foi um sucesso. Foi emocionante ver todo mundo gritando como se o grupo já fosse famoso e, como já era de se esperar, pela reação do público, eles ganharam o primeiro lugar, e seu primeiro premio, em dinheiro. Dinheiro que eles dividiram entre si, mas com uma condição para todos: comprar roupas e acessórios para seus shows, e foi o que fizeram.
Eu, por minha vez, participei do concurso de karaokê e tirei o segundo lugar, ganhando fichas de pescaria e lanches.
A semana passou rápida, e foi em outra festa junina, na rua Nova Esperança, em frente a padaria do Muniz, que aconteceria um fato marcante, não só nas nossas vidas, mas na vida do povo do Bom Pastor e na história da baixada Fluminense. Coloquei um vestido que a Nina tinha me emprestado e um sapato com um numero menor que meu pé, um sapato que a minha tia Luzia havia dado, porem como eu não tinha nenhum outro, e tinha gostado muito dele, era marrom, cheio de furinhos, o coloquei mesmo sentido dor, achei que suportaria. Peguei minha pequena irmã Beth pela mão e a levei para festa que começava às 18hs. Meu irmão também estaria por lá, o que deixou nossa mãe tranqüila quanto a Beth ir.
A festa estava linda, super animada... Aliás, para mim, até hoje, a melhor festa que existe é a junina. Eu estava na barraca do Carlinhos, bem em frente à padaria, comendo maçã do amor com minha irmã, quando, de repente, um opala branco, de vidros escuros freia bem em cima do muro do Ferro velho e saem três caras armados, encapuzados, atirando sem motivo algum para todos os lados. Um deles se aproximou do Carlinhos, puxou o gatilho, mas a bala não saiu, dando tempo dele correr, eu que estava ao lado da barraca, fiquei em estado de choque, paralisada, não conseguia me mexer, quando de repente senti alguém me puxar pelo braço, era o Joãozinho, que abaixou minha cabeça e saiu me puxando em zig-zag para longe dali... Mas os bandidos cercaram cada esquina e ficavam atirando para todos que tentavam sair do local, pois a festa estava acontecendo num miolo entre essas esquinas. O desespero era total, todos gritando, chorando, minha irmã saiu correndo, se afastando de mim, eu entrei em desespero querendo achá-la... Enquanto isso, um homem agonizando dentro de um valão tentava puxar minhas pernas para que eu o socorresse, mas eu nada podia fazer, tinha que achar minha irmãzinha e meu irmão. Foi quando vi o Ricardo, e comecei a gritar seu nome, ele veio até a mim se desviando de tiros, quando ele chegou perto eu o abracei em prantos, dizendo:
- A Beth, ela está por ai, minha irmã, me ajude.
Ele me disse:
- Fica calma Sandrinha, eu vou achar a Betinha, eu prometo, não sai daqui, eu vou achá-la e vou trazer aqui, depois levo vocês para casa.
E assim ele fez, voltou com minha irmã no colo, me pegou pela mão e nos ajudou a sair dali. Ao Chegar em casa, uma sensação de alivio me dominou pelo fato da minha irmã estar sã e salva, e nesse mesmo instante sinto meus pés encharcados, como se estivessem molhados, e quando olho, estavam banhados em sangue. Na hora do corre-corre nem senti dor, e o sapato estava tão apertado que deixou meus pés em carne viva, ai comecei a sentir a dor. Porém, a dor que realmente me invadiu foi a preocupação com meu irmão, pois ele estava sei lá onde, e não havia chegado. Então, me ajoelhei e comecei a rezar, pedindo a Deus que o guardasse, minutos depois ele chegou, e eu fingido que estava dormindo, respirei fundo, aliviada, agradecendo a Deus por guardar meu irmão.
No dia seguinte, as noticias... Foi uma das chacinas mais brutais da baixada naquele ano:
23 mortos. Entre eles crianças, idosos, pessoas de família e honestas. E o mistério permanece até hoje. Ninguém sabe o motivo daquilo tudo...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Novos amigos, novos horizontes.

1984. Nesse ano a política nacional passava por um momento de marcante transformação, e o Bom Pastor também.
Minha vida, antes disso se resumia a rua ponta negra e aos amigos dela.
Até que um dia minha mãe, olhando o armário e a geladeira, viu que não tinha nada para comermos, e mandou que eu fosse atrás do meu irmão na casa do Jamelão, que era do mesmo grupo de dança do meu irmão.
-Sandrinha, vai na casa do Jamelão, é a primeira casa, depois do bar, lá do morrão. Fala pro teu irmão que vou pegar o dinheiro do cofrinho dele pra comprar comida!
O cofre do meu irmão era feito de lata e o dinheiro era das pulseiras que ele fazia com linha e alça de bolsa de supermercado.
Meu irmão ensaiava todos os dias com o grupo The Break City, do qual ele era o líder.
O grupo era o mais famoso da área, ganhava todos os concursos, e faziam parte dele: Edson 15 anos, Bill 16 anos, Speed 15 anos, Jamelão 13 anos, e meu irmão Alexandre, 15 anos.
Ao chegar na casa do Jamelão, comecei a chamar no portão e quem veio me atender foi a Verinha, que daquele dia em diante, se tornaria uma das minhas melhores amigas, e um símbolo de beleza e estilo pra mim. Ela abriu o portão com um lindo sorriso no rosto e disse:
- Você é a irmã do Lima, né?!
- Sou sim, minha mãe pediu que eu viesse aqui falar com ele.
-Entra, vai lá falar com ele!
Quando entrei, fiquei encantada, a casa era muito grande, na varanda, ensaiando o grupo de jazz panteras negras, do qual faziam parte, Verinha 16 anos, Elias 16 anos, Elza 17 anos, Nina 18 anos.
Na sala, uma vitrola, moveis de alvenaria, e o grupo The Break City , o meu encantamento foi quebrado com o grito do meu irmão.
- Vai pra casa!
-Não vou não, você não manda em mim.
Verinha com o jeitinho doce e único dela diz:
- Lima, deixa sua irmã aqui com a gente e vai ver o que sua mãe quer com você.
A partir daquele dia, a Verinha estava arranjando sarna pra se coçar, eu nunca mais desgrudaria dela e da Nina. Todos os dias eu ia pra lá assistir os ensaios e implorar pra fazer parte do grupo. Mas para entrar no grupo, tinha uma regra básica: ser negra. E eu era branca e desengonçada.
Foi então que pra me consolar, ela resolveu tirar uma hora do dia, antes do ensaio do grupo para me dar aulas de jazz.
A Nina por outro lado, me elegeu a mascote do grupo e me adotou com todo amor e carinho, eu não tinha roupas bonitas nem bijus, andava maltrapilha e era estabanada. Nina adorava me arrumar, me emprestava roupas, penteava meu cabelo, e me maquiava. Ela era mais velha e não tinha boa fama, mas eu até hoje não entendo o porque de tantos boatos, eu nunca tinha visto nada demais, de errado, por parte dela, as pessoas diziam que ela era má companhia pra mim, e chegaram ir a minha casa falar para minha mãe que eu estava andando com uma mulher da vida, e que ela não era boa companhia pra uma menina como eu. Mas minha mãe, uma mulher muito sábia, não ouvia as fofocas, ela acreditava nas coisas que eu falava a respeito da Nina e de todas as meninas do grupo, que só pensavam em dançar.
A Verinha, naquela época, já namorava o Marcos a uns três anos, isso em 1984, e hoje em 2009, esta casada com ele e construiu uma família unida e linda. Aquelas meninas eram minha referência, lindas, leais, inteligentes, e muito parceiras umas das outras. Quando eu estava com elas estufava meu peito de orgulho, me sentia a própria pantera negra, e vivia fazendo permanentes, pois não suportava meu cabelo escorrido, como não suporto até hoje.

Aprendendo a valorizar o que realmente tem valor.

Nos dias em que minha mãe esteve internada, sem dizer uma palavra se quer, ela me deu uma lição de vida que nunca mais esqueci.
No hospital, ela pedia aos pacientes copinhos e colheres das sobremesas, lavava bem e juntava num saco para nos entregar e dizia:
-É pra dividir com as meninas da rua.
Isso me marcou muito, pois naquela época não podíamos ter panelinhas, pratinhos de brinquedo, e aqueles copinhos e colheres nos proporcionavam uma grande alegria para brincarmos de comidinha. Com esse gesto, aprendi que ás vezes, um pequeno gesto mostra o quanto alguém se importa com a gente, não é o valor do material, mas o valor da lembrança.
Minha mãe, não nos esquecia, nem ali, num momento tão difícil pra ela.
Talvez, se ela tivesse dinheiro, e tivesse comprado panelinhas de brinquedo, não teria me ensinado tanto como me ensinou.
Sair do meu mundinho, do Bom Pastor foi um duro despertar.
Eu achava que poderia seguir os passos de meus pais, da minha mãe Adelaide e de minha avó Euvíra, essa para mim era linda, uma mulher de setenta anos, com gestos de criança, pureza de criança. Eu dizia que quando ficasse velhinha queria ser como ela, sempre cercada de crianças e adolescentes. Ela adorava contar histórias lá do Ceará, sua terra, cantar suas canções preferidas.
Era uma mulher de extrema fé, usava um terço branco florescente no pescoço que não tirava pra nada, era conhecida como Olívia Palito, pois era muito magra, alta, e usava cabelo chanel.
Todos os dias, ela ia até a nossa escola levar nossa merenda, pão com ovo.
Éramos muito humilhados, pois todas as crianças tinham dinheiro para comprar doces e merenda, e nós, não, mas eu tinha uma avó especial, que era conhecida e querida por todos, ela ganhava convites para parques, circos, mesmo sem ter um centavo, nós íamos a muitos lugares, ainda ganhávamos pipocas, sorvetes.
Alem da minha avó de sangue, eu tinha minha querida avó Maria, uma pretinha de meio metro, magrinha, que sempre usava um lenço na cabeça.
Todas as tardes, minha avó Maria me esperava pra tomar café com ela, para me contar lindas histórias, foi com ela que descobri sobre sereias e orixás, nossas tardes eram muito gostosas, eu amava, sinto falta de toda a pureza e simplicidade daquela época.

Meu pai, a expressão do amor, em pessoa.

Meu pai foi e continua sendo um herói para os moradores da rua ponta negra e para mim. Parece que estou vendo seus olhos, o jeito como ficavam quando via um vizinho doente ou necessitado, era cativante a maneira como se importava e se esforçava pelo próximo, nunca conheci de perto um homem igual a ele, que com certeza, mesmo com todos seus defeitos, é e sempre será meu maior exemplo de vida.
Lembro-me das vezes em que ele me contava histórias, e uma das histórias que eu mais gostava de ouvir era a história de amor dele e da minha mãe.
Minha mãe vinha de uma família tradicional, onde era expressamente proibido falar palavrão, não podia falar alto ou rir alto. Estudo, cultura e etiqueta eram uma exigência.
Meu pai, português, de Trás dos Montes, homem rude, criado em plantação, pai e mãe analfabetos.
De cada dez palavras que saiam da boca do meu pai, nove eram palavrões, seu tom sempre alto, e mesmo que estivesse apenas conversando, parecia que estava brigando.
Mas foi esse homem que entrou de cabeça numa guerra pela mulher amada, minha mãe.
Eles tinham namorado um tempo, se separaram e ficaram uns bons tempos sem se ver, até que um dia se reencontram. Minha mãe estava grávida de seu ex-namorado, sem apoio da família, sem ter pra onde ir, sem emprego, e meu pai disse a ela que assumiria seu filho como um filho e que jamais faria diferença dele com os outros filhos e que o amaria com todas as forças e faria o melhor pelo bebê, e foi isso que ele fez pelo meu irmão Alexandre. Minha mãe conta que meu pai cuidava do bebê de madrugada, fazia as tarefas da casa quando chegava do trabalho.
A promessa dele foi cumprida de tal maneira, que meu irmão o ama demais até hoje. E sempre que pode está com ele e tem orgulho do pai que teve. Minha mãe também provou seu amor e gratidão por ele quando foi morar no Bom Pastor, pois ela teve a chance de trocar meu pai por um homem rico e não fez, foi leal a ele e passou muitas lutas ao seu lado.

Meu pai se fazia de durão, não gostava de chorar na nossa frente nem demonstrar suas fraquezas, suas dores, mas era só olhar para dentro de seus olhos, e estava ali, pois era um ser muito transparente e verdadeiro.
Foi o que comecei a perceber quando minha mãe teve que se internar para uma operação, eu o via sempre pelos cantos, com olhos tristes, rosto cabisbaixo... Na época não existia celular, e a visita era uma vez na semana e quem tinha um ente querido doente, morria de saudades.
Nesse momento difícil da nossa vida, minha querida mãe Adelaide foi um anjo em nossas vidas, era ela quem cuidava de nós e de meu pai, lavava as nossas roupas, nos dava comida.

Em meio às dificuldades, lições de solidariedade.

Apesar de todas as dificuldades, para nós ali era o melhor lugar do mundo.
Ali aprendi valores que carrego até hoje comigo, conheci pessoas, que mais parecem ter saído de contos de fadas, pessoas especiais como minha mãe preta, que tinha o sonho de ser medica ou enfermeira, mas como teve uma infância muito pobre, na roça, não pode estudar, depois de casada, e com filhos, começou a fazer o que mas gostava na vida, ajudar ao próximo, trabalhando de voluntária em diversos hospitais, amada e querida por todas as equipes médicas por onde ela passava.
Quanto minha mãe de verdade, essa também passou a vida se doando em prol do próximo.
Desde o gesto mais simples, ao mais sacrificante, um gesto simples, que me recordo ter um grande valor, era o fato de dividir o nosso óleo de amêndoas, para cabelos, com as meninas da rua. Minha mãe sentava nas ruínas da nossa varanda e começava a trançar nossos cabelos, os de Luciana, Vilma, Denise e Rose. Minha mãe adorava cuidar das meninas, vê-las bonitas e felizes.
Meu pai também era uma figura singular, o português que ficou pobre de tanto ajudar os outros, contrariando tudo que se fala sobre portugueses.
Ele era como um pai, um mantenedor para as crianças da rua, que quando avistavam o velho caminhão azul, bem longe, na curva da Bayer do Brasil, já começavam a gritar:
- Lá vem o português! Lá vem o português!
E assim, o morro ficava em festa, pois sempre que meu pai vinha do Ceasa, trazia frutas, queijos e verduras para distribuir para as famílias da rua.
Lembro-me de uma certa vez em que ele fez um frete para uma fabrica de sapatos, e não cobrou em dinheiro, cobrou em mercadorias, pediu ao dono da fabrica, que desse a ele, sapatos com pequenos defeitos, para doar para as crianças.
E quando ele chegou com os sapatos, mais uma lição de vida nos deu, queríamos escolher mais sapatos, porque éramos filhos dele e achávamos que isso nos dava um direito maior, e ele nos ensinou que devemos dividir, não devemos ser egoístas e mesquinhos.
Ele disse:
- Vocês são meus filhos, mas precisam igual às outras crianças, nem mais, nem menos, então devemos dividir igualmente para que as outras crianças também possam ficar felizes.
Tenho orgulho desse guerreiro, mais conhecido como Chico Maluco, que era de uma loucura fascinante, puro como um menino, contraditório, pois de sua boca saia os mais horrendos palavrões, e de suas mãos os maiores gestos de amor ao próximo, e de grandeza de ideais. Um homem cabeludo, descabelado, de botas, casaco de couro, semblante rude e desbocado, mas com o coração mais mole que já vi. Ajudava a todos, era o único que tinha carro nas redondezas e levava todo mundo no medico, amava os animais e deixava de comer para doar a quem tinha fome, e até mesmo para os animais.

Vida marcada pelo sobrenatural

Durante alguns anos eu sofri em demasia por não saber lidar com os fatos sobrenaturais que ocorriam em minha vida, desde que era ainda bem pequenininha.
Ver pessoas dentro de copos d’água, ter premonições, ver pessoas falecidas.
Lembro-me que uma certa madrugada, por volta das três horas da manhã, meus pais me acordaram, e me colocaram num circulo, onde dentro havia uma estrela, ou um pentagrama, não me recordo claramente. Minha mãe estava incorporada por um espírito, que me jogava perfume de alfazema, e azeite de dendê, meu pai se aproximou do circulo, e também foi banhado com os mesmos elementos.
A entidade se dizia protetora e dizia que o universo conspiraria ao meu favor, e que minha caminhada seria brilhante.
Com certeza a intenção de meus pais eram as melhores, porem para uma criança de nove anos, tudo parecia assustador, afinal, eu não estava reconhecendo a minha mãe, e não entendia o significado de tudo que estava acontecendo ali.
Uma certa vez sonhei com uma menina que eu nunca tinha visto na vida, e no sonho, era como se ela quisesse me falar algo, como se precisa-se de algo, mas eu não sabia o que fazer, eu não a conhecia, nunca havia a visto, a lembrança dela me atordoava, não conseguia apagá-la da minha mente, eu podia sentir a sua dor, a sua tristeza, sei lá...
Até que um dia, fui ao enterro de uma amiga, e como é de hábito meu, fui passear no cemitério olhando os túmulos. Tive uma surpresa assustadora: vi a foto da menina num túmulo, me lembro que fiquei em estado de choque, como que em transe.Pensei:
-Meu Deus, o que significa isso?!
Mas como muitas coisas da minha vida, essa pergunta continua até hoje sem resposta.
Outra coisa que sempre me assustava, era ver minha mãe em dois lugares ao mesmo tempo, me lembro que certa vez vi minha mãe no quarto deitada, porem, havia algo estranho com ela, parecia estar envolta numa luz branca, e estava completamente imóvel, eu a chamava, e ela não se mexia, foi quando do nada ela surge da cozinha perguntando o que eu queria, eu assustada disse:
- Mãe, você estava aqui, como está ai? Não tem como!
Minha mãe disse:
-Não precisa ficar assustada, você deve ter visto o meu anjo de guarda.
Não sei se o lugar, o fato de toda família vir do espiritismo contribuía para todos esses fatos.
Uma das coisas mais assustadoras que me acontecia era quando do nada eu caia no sono, na frente de todos, as pessoas me viam como se eu tivesse dormido ou desmaiada, mas eu as via a minha volta, me chamando, perguntando o que houve, batendo em meu rosto, colocando álcool para eu inalar, e eu falando com elas, mas elas não me ouviam, era desesperador, eu podia ver eu mesma, saindo de mim, e lutava para retornar ao corpo.
O Bom Pastor também era um lugar mágico, parecia um desses lugarzinhos na roça, sem água, sem luz. Talvez isso tudo tenha colaborado com os fenômenos que aconteciam comigo.

A Grande fogueira

A vida é mesmo um grande mistério... Não tínhamos brinquedos, roupas, bom alimento, passeios, tv, computador, nada material... No entanto, éramos tão felizes, que seria impossível descrever. Com o passar do tempo, fui percebendo que a inocência nos torna felizes, nos protege das maldades do mundo, porem, isso quando temos o nosso próprio mundo.
E eu tinha meu mundo, ali, naquele lugarzinho, simples, cheio de pessoas reais, verdadeiras, como nunca vi igual.
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O Bom Pastor foi uma escola para mim, de amor, solidariedade e lealdade. Com meus amigos de lá e com meus pais, aprendi a doar, perdoar e confiar.
Talvez, a felicidade que sentia era justamente o fato de ali ter amigos de verdade, uns apoiando e cuidando dos outros.
Quando um amigo tinha uma obra, todos se reunião para ajudar, e o dia de colocar a laje era a maior festa, as mulheres preparavam uma comida especial, na maioria das vezes feijoada, e os homens compravam a cachaça, e depois da laje pronta, todos comemoravam comendo e bebendo.
Uma hora muito especial era as sete horas da noite, nessa hora, em que o velho radinho de pilha, o único veiculo de entretenimento, passava a hora do Brasil.
Nessa hora, todos se reuniam na rua ponta negra para acender uma grande fogueira, assar aipim, batata doce, bananas e ouvir e contar histórias de fantasmas e assombrações.
Éramos três famílias reunidas: a de dona Laurinda, com seus filhos Luciana, e Luciano e seu esposo Agenor, a de Adelaide, minha querida mãe preta, seus filhos pequenos Everaldo e André e seu esposo Oliveira, e a nossa família, eu, minha mãe, minha irmã Beth, meu irmão Alexandre, e meu pai. Também fazia parte dos componentes em volta da fogueira o Eugênio, a Lena, Vilma, Denise, e dona China, que vinham de outra rua um pouco distante, para compartilhar aqueles momentos especiais.
O Eugênio adorava bananas assadas na fogueira, e eu adorava as histórias que ele contava sobre lobisomem.
Eu tinha um instinto moleque, menino, subia em pau de sebo, entrava em terrenos proibidos pra roubar frutas, principalmente bananas, sempre roubava bananas pra presentear o Eugênio, só pra ouvir suas incontáveis histórias.
A rua ponta negra era cercada de mato e currais, não havia luz e a grande fogueira iluminava, aquecia, e ainda assava a comida.
Eu me lembro que esperava ansiosa o dia de lua cheia para ver a lua, linda, iluminando toda aquela escuridão, mas também, com a chegada da lua cheia, minha mente imaginativa viajava, eu não dormia, lembro que ficava a noite toda acordada na janela, esperando ver o ser que durante anos me fascinou e causou medo.
O ambiente ali era propicio a mentes férteis, e uma das mais famosas assombrações do local era a mula-sem-cabeça, que diziam que aparecia no curral em frente a minha casa, nas noites de quinta pra sexta, e eu ficava acordada pra vê-la, e nada...
Minha infância foi mágica e cheia de calor humano e muitas lições de vida.

Chegando ao Bom Pastor

O Ano é 1979, mas parece que foi ontem que chegamos ao Bom Pastor.
Fecho os olhos e quase posso sentir o cheiro do barro molhado e contemplar o verde das matas, e o vermelho do barro.
Saímos da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, onde morávamos de favor, e finalmente estávamos festejando a nossa casa própria.
Apesar das muitas lutas, a história de amor de meus pais era um orgulho para nós, um lar cheio de ternura e respeito, e principalmente amor.
Ali estava a minha mãe, a garota da Zona Sul, culta, cheia de boas maneiras, acostumada com uma vida social, indo para o Bom Pastor, um lugarzinho distante, simples, sem recursos algum, sem água encanada, sem luz.
Tudo por amor ao meu pai, um português motociclista, aventureiro, cabeludo, descabelado, e desbocado, mas com o coração mais puro que já conheci na vida.
Na boleia do velho caminhão azul do meu pai vínhamos eu e meu irmão Alexandre e na frente, minha irmã mais nova, Beth, ao lado dos nossos Pais.
Assim que avistei o Bom Pastor, uma sensação de felicidade invadiu meu coração, não sei se esse sentimento era por saber que estávamos indo pro que era nosso, ou se eu estava prevendo que ali eu passaria os anos mais marcantes e belos da minha vida. Para minha mãe, era a terra do sol nascente, onde um novo sol nascia pra ela.
Para mim, era a terra, das minhas raízes, onde eu plantaria e colheria os frutos de uma vida.
Logo que chegamos, minha mãe conheceu Adelaide, a mulher que se tornaria a melhor amiga de toda a sua vida.
Estávamos em casa, arrumando as coisas, quando alguém coloca a cara na janela e diz:
- Só faltava essa! Agora temos uma branca azeda na rua! - Disse isso rindo, e entregou um pedaço de bolo de fubá pra minha mãe, que respondeu rindo:
- Quase achei que estava numa senzala! - Adelaide ri, e como não podia deixar de ser, da mais uma espetada:
-Não vai comer o bolo não?! Porque, não come comida de negro?
Minha mãe responde:
- Obrigada, e se não tiver bom, te ponho no tronco e dou uma boa surra, pra aprender a cozinhar! (muitos risos)
A partir daquele dia, ambas se tornaram quase irmãs de sangue, sempre uma ajudando e amparando a outra, uma amizade linda e verdadeira que já dura 30 anos.
Primeira semana em Bom Pastor... Chegou a sexta feira, dia em que todas as mulheres se reunião pra lavar roupas. Minha mãe era a única mulher branca da rua, e quase do bairro todo, acho que ela aprendeu muito com aquelas grandes guerreiras.
Para chegar ao lago onde se lavava as roupas, andávamos entre trilhas de matas e morros.
Para as crianças, era um dia de festas. Enquanto as mães trabalhavam, nós caçávamos borboletas, arrancávamos tomates do mato pra comer.
Foi na primeira semana após a chegada, num desses encontros em que as mulheres da rua ponta negra se encontravam, que minha mãe, conheceu Laurinda e Marilsa.
E lá iam as mulheres com trouxas na cabeça, e baldes na mão...